1.12.08

Lançamento Trilogia Canalha dia 18/12

Gentes,

Lançamento do livro do Léo Cortez, dia 18/12, das 18h30 às 21h30, na Livraria da Vila da Rua Fradique Coutinho. Durante o evento haverá leitura dramática de uma das peças da trilogia – qual, ainda se faz segredo.

Espalhem, divulguem.


30.10.08

blog da Rosa, da coleção Retratos de Família


Descobri que a Rosa, do Retratos de Família, mantém um blog no site da Hilary McKay! É sério, foi quase uma epifania. Amo a Rosa. Pra quem gosta da coleção, vale a dica. A gente descobre preciosidades como o fato de que David saiu da escola e abriu o equivalente britânico de uma banca de dogão [!!!]

little gordon

No ano passado, fizemos parte da tradução da obra Paixão pelo sabor, do badalado Gordon Ramsay. Às voltas com receitas especialíssimas de gabarito, como as espumas famosas do homem [que em inglês ele chama de "cappuccino"], aprendemos muito sobre ele e começamos a assistir seu programa de TV, em que ele desanca os pobres aspirantes a pilotar fogões, panelas e afins. Pois bem, uma longa história só pra dizer que achamos um site de zoeira sobre o Gordon, o Little Gordon, com uma versão mini do cara... é de rir até cair.

lançamento do Clube de Investimentos dia 4/11













Finalmente, depois de muita labuta e 45 dias de gráfica, o livro do Peter será lançado. Em alto estilo, no Brascan Mall. Apareça quem puder. Estamos felicíssimos.

21.2.08

24.10.07

ferreira gullar e o cheiro da tangerina

"O espanto é isso, algo que irrompe o tecido conceitual do mundo. Porque nós vivemos onde está tudo explicado. Aparentemente. Mas de repente, como não está explicado, o mundo mete o cotovelo, rompe o tecido e lhe mostra o cotovelo dele, o cotovelo assombroso dele. O real mostra o seu cotovelo inexplicável. E aí você entra nesse estado do inexplicável, do mistério do mundo, da riqueza da vida. Aí qualquer coisa acontece."

Trecho da entrevista que Carol fez em 2003 na casa do Ferreira Gullar, no Rio. Foram mais de quatro horas de fita. O poeta falou de exílio, da consagração atual, do Poema Sujo e de A Luta Corporal, de seu processo de criação, de artes plásticas e movimento neoconcreto, de literatura e de gatos – afinal, tanto Carol como Gullar são amantes de felinos. Vale a pena ler. [Os títulos das obras estão com iniciais em CA, padrão SomLivre.com... Rever é recordar.]



O POETA DO LIMITE
Ana Carolina Mesquita

Ele nasceu moleque das ruas de São Luís do Maranhão, começou a escrever poesia parnasiana na adolescência e acreditava que os poetas eram todos mortos, até conhecer os poetas bem vivos que se encontravam na praça perto de sua casa. Decidiu ser poeta. Mas foi também radialista, participou do movimento concretista e fundou o neoconcretismo, virou ativista político, consagrou-se como crítico de arte, trabalhou em jornal e viveu no exílio durante a ditadura militar. Foi amigo de Lúcio Cardoso, Nara Leão, Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, e escreveu para teatro e TV. Hoje, aos 71 anos, José Ribamar Ferreira, conhecido pelo pseudônimo Ferreira Gullar, é considerado o maior poeta vivo brasileiro.

Um título que ele rejeita: "Não existe isso". Ferreira Gullar é um homem extremamente humilde, que acolhe o estranho como amigo até prova em contrário e que admite ser o poema a escolher o poeta. Apesar da idade, a intensidade permanece em seus gestos e expressões, a mesma intensidade do homem que nos anos 1950 e 1960 submeteu a linguagem poética aos mais altos níveis de desconstrução, buscando como um louco os limites da poesia. Dessa paixão alucinante nasceu A Luta Corporal, considerado o livro mais subversivo da poética na língua portuguesa; e o Poema Sujo, de 80 páginas (!), tido como ápice de sua obra. Mas nasceram também as experiências do "Livro-poema", um poema que é na verdade um livro, e do "Poema Enterrado", precursor da atual instalação nas artes plásticas, nascido do fracasso de um poema concreto e inspirador da obra de Lygia Clark.

"Nunca tive projeto nenhum, nem literário, nem na vida", diz ele, que recebeu a Som Livre.com numa tarde em sua casa em Copacabana, misto de galeria de arte com biblioteca. A um canto, dormia o Gatinho, seu companheiro há 12 anos, que virou estrela do último livro do poeta, Um Gato Chamado Gatinho, série de poemas infantis. (Surpresa: o Gatinho é na verdade um gato imenso. Os nomes enganam). O neto de Gullar ilustraria o livro, mas se recusou a desenhar um bicho protegido. "O negócio dele é desenhar bicho em extinção", ri. "É um desenhista engajado."

O livro ganhou uma apaixonada, a compositora e cantora Adriana Calcanhotto, que está musicando os poemas. "Nunca tive intenção de escrever para crianças, esse livro nasceu da graça do Gatinho." E da sugestão de sua musa, a poeta Claudia Ahimsa, sua segunda mulher, que conheceu em 1994 na Feira de Livros de Frankfurt, um ano após a morte da atriz Thereza Aragão, mãe de seus filhos Paulo, Luciana e Marcos, falecido em 1990. Ahimsa ajudou o poeta a combater a depressão depois da concretude da morte, tema constante em sua poesia.

Em 2000, foi lançada a edição comemorativa de sua antologia poética, Toda Poesia, lançado pela primeira vez em 1980, por ocasião dos 50 anos de Gullar. Ainda em 2000, ele é tema da exposição do MAM carioca "Ferreira Gullar 70 anos", juntando duas de suas maiores paixões: as artes plásticas e a literatura. Outra paixão, menos óbvia, são os mistérios do universo, "com os quais não paro de me assombrar e de me maravilhar". Nessa entrevista exclusiva, Gullar conta como é seu processo criativo, fala sobre sua consagração e sua trajetória. "Eu acho que a poesia que eu escrevi, que constitui esse livro (Toda Poesia), é a poesia que eu podia escrever, o melhor possível que eu podia fazer."

O maior poeta vivo
Somlivre.com - O senhor hoje é considerado o maior poeta vivo brasileiro. Como vê isso? Considera-se o maior poeta vivo brasileiro?
Ferreira Gullar - Não, que é isso. Não sou pirado. Algumas pessoas têm essa opinião, outras têm outras. Como Drummond dizia: "Você tem um metro aí para medir, pra saber quem é o maior, quem é o menor?" (risos) É claro que depois que você se torna um poeta nacionalmente conhecido, como era o Drummond, o João Cabral, o Vinicius, começam as pessoas a fazer o Fla-Flu, "acho que é fulano, acho que é beltrano" (risos). Entendo isso como manifestação de afeto pela minha poesia. Eles gostam tanto que dizem isso.
Sl - E esse título o incomoda?
Gullar - Fico meio constrangido. Ainda ontem fui a um debate na universidade e lá o apresentador falou isso; aí começo a fazer careta, gozando o cara. Não consigo ficar sério diante disso.
Sl - O senhor está num momento de retrospecto de sua carreira, com a reedição de sua antologia?
Gullar - Esse livro foi sendo republicado desde 1980, e já foram acrescentados mais de dois livros a ele. Ele já está na nona edição, a décima está saindo agora. Ele reúne toda a minha poesia até o momento.
Sl - O senhor vem reavaliando suas poesias?
Gullar - Sempre fui muito exigente no que publico. Tanto que meu primeiro livro, que publiquei aos 19 anos de idade, foi excluído da antologia. É um livro ingênuo, imaturo. Até para escrever cada poema [sou exigente]; se não sinto que aquele poema acrescenta alguma coisa ao que eu já escrevi, se não sinto que ele tem uma força interior verdadeira, eu não o escrevo. Começo, abandono, não vou adiante. Quando sinto que está fraco, prefiro não fazer. De modo que cada poema meu é na verdade uma antologia. É uma seleção rigorosa. A única exceção na antologia são os poemas de cordel. De fato, não considero que eles tenham o mesmo nível do resto, mas foram escritos numa situação determinada, fazem parte da minha história como poeta e como cidadão, então para mim é difícil tirá-los.

Poema Sujo e ditadura
Somlivre.com - O que o senhor acha da consagração do Poema Sujo hoje, considerado símbolo maior de sua obra? O senhor considera esse poema o ápice de sua obra?
Ferreira Gullar - É difícil dizer isso, mas uma coisa é verdade: ele representa do ponto de vista da minha experiência literária um momento realmente excepcional. Primeiro, nunca escrevi um poema daquele tamanho. Só escrevo por uma necessidade real; por isso mesmo meus poemas em geral são curtos. Agora, escrever um poema de 70 páginas?! Entrar num barato que durou meses?! É uma coisa que nunca tinha me acontecido e que nunca me aconteceu depois. Então sob esse aspecto de experiência literária e de vida, ele é realmente uma coisa fora do comum na minha experiência pessoal.

Mas outras coisas o tornam um poema especial para mim: ele é um resgate não só da infância, mas de tudo que foi vivido. E foi escrito em condições de risco total. Eu estava numa ditadura brutal que prendia, torturava e assassinava, e era um foragido em Buenos Aires. A polícia brasileira, se sabe, ligada à argentina, então a qualquer momento eu podia ser morto. Todos esses fatores contribuíram para criar uma situação especial e o poema ter nascido assim. Eu acho que ele tem esse aspecto de coisa complexa, e também das coisas nascidas da vida. Uma coisa é você bolar uma obra literária e realizar. Alguns poemas, embora eu não seja de planejar muito, nascem de um pensamento estético e literário, mais intelectual. Mas outros poemas nascem da própria existência, como esse, que era o salva-vidas. Por essa razão toda, a obra literária, a obra de arte em geral, é determinada por fatores subjetivos, que não se controlam, e esse estado de espírito pode ser altamente fecundador conforme seja sua intensidade.

Dostoiévski diz que o impulso de criar determina a intensidade da obra. Esse estado fecundador libera forças e significados que num estado normal não se consegue alcançar. Num estado normal, a palavra pêra é pêra. Mas nesse outro estado, a palavra ganha uma irradiação tal que convoca significados que jamais se suspeitou! Um libertar de matéria interior adormecida que de repente desperta. São esses fatores que contribuíram para dar essa dimensão ao poema. E é engraçado, porque mesmo sendo longo, ele ganhou popularidade - e não só pelas circunstâncias em que apareceu, porque continua sendo um poema lido e estudado, inclusive fora do Brasil, na Alemanha, nos Estados Unidos. Na Suécia acaba de ser traduzido. Quer dizer, ele desperta uma coisa nas pessoas. Sob esse aspecto, ele é um poema que de fato tem um peso no meu trabalho literário.

A Luta Corporal
Somlivre.com - E A Luta Corporal?
Ferreira Gullar - Tem pessoas que dizem que o meu primeiro livro (que é na verdade o segundo) é o mais significativo de minha obra, A Luta Corporal. Eu não vou discutir isso porque não cabe a mim. A Luta Corporal é uma obra... daquela época, de um jovem descobrindo o mundo da poesia com uma ferocidade e uma audácia realmente muito grandes. Acho que, independente da qualidade que ela tenha, é uma experiência única na história da literatura de língua portuguesa de radicalismo estético, de busca dos limites da poesia a ponto de estourar tudo.

Aprendi a fazer poesia com grandes poetas, Elliot, Rilke, Drummond, Bandeira, Murilo, que são meus mestres e aos quais não pretendo me comparar. Mas a minha diferença com relação a eles é que eu fui mais doido, mais radical. Talvez porque eles já tivessem ido tão longe que só me sobrasse naquele momento radicalizar. Então há gente que prefira A Luta Corporal por esse radicalismo e essa experiência de alquimia vocabular. Um crítico chegou a dizer que o resto não vale nada, (risos), o que eu realmente não concordo. Acho que mudei, deixei de ser um jovem alucinado e embebedado de poesia para ser um poeta político, embebedado pela revolução, e depois ser um poeta mais maduro e reflexivo, que acho que hoje sou. Continuo apaixonado, mas hoje sou mais reflexivo. E vejo que a poesia de meu último livro tem menos alquimia no sentido de subverter a linguagem. É mais reflexão. Que é conseqüência do meu caminho.

Hoje recebi uma carta impressionante de um rapaz de Teresina, dizendo que descobriu Muitas Vozes e que não pára de lê-lo, que o livro é a revelação da poesia da vida dele. Escreveu para me agradecer. A arte é muito da paixão, e é muito do que ela oferece às pessoas, não dá para discutir. Para esse cara, certamente, se você for dizer que o Poema Sujo é melhor, ele vai dizer que jamais! (risos) Não dá para discutir. E fico contente de ver que os meus diferentes livros despertam paixões as mais diversas; e em gente jovem, porque esse que escreveu é um rapaz. Um trabalhador, pobre, que vive levando mercadorias de kombi numa firma. Mas a carta dele revela uma pessoa inteligente, lendo coisas como filosofia, estética. Me dá muito prazer ver que meus livros falam às pessoas jovens também, e não só ao pessoal da minha geração.

Poesia concreta
Somlivre.com - O senhor falava do "Poema Enterrado", e a única palavra que tinha lá era "rejuvenesça". Por que justamente essa palavra?
Ferreira Gullar - No centro da sala subterrânea havia um cubo de 50 por 50 cm, vermelho. Embaixo dele tinha um cubo verde de 30 por 30, levantando o cubo verde havia um cubo menorzinho, branco, compacto. Erguendo-o, a face pousada no solo trazia a palavra "rejuvenesça". Para esse gesto de pegá-lo do solo e olhar, que é meio hamletiano (o Hamlet com a caveira, olhando a morte), está escrito quase ironicamente a palavra rejuvenesça. É um imperativo impossível de ser atendido, rejuvenescer. Foi de propósito colocá-la como uma palavra de ordem, "rejuvenesça", quer dizer, volte à vida, porque aquilo está dentro de um túmulo, praticamente.
Sl - É quase uma instalação.
Gullar - É anterior a todas as instalações. Foi feito em 1960. E tudo tem uma lógica, não pensei: "Ah, agora vou fazer um poema estranho". Nunca faço nada assim. Na verdade, escrevi um poema concreto que era um quadrado formado pela palavra "verde", de cuja ponta saía a palavra "erva". Na minha cabeça era assim: "verde verde verde verdeerva". Do próprio "er" do verde nasce a erva. Aí publiquei no jornal. Um amigo meu me ligou e falou: "Li seu poema, achei legal"; aí eu: "Você viu como a repetição da palavra verde faz nascer a erva?", e ele: "Não vi nada disso. Quando olhei no jornal e vi que era só a palavra verde repetida, não fiquei lendo verde, verde, verde. O olhar abrangeu tudo; para que eu vou ler?" Desliguei o telefone e falei: "O poema está errado, não consegui o que eu queria". Aí comecei a pensar de que maneira fazer um poema que resultasse numa forma geométrica, definida, mas que obrigasse o cara a ler palavra por palavra. Um poema espacial, mas ao mesmo tempo temporal, isto é, construído paulatinamente pela leitura. Descobri que a maneira de fazer isso seria escrever no verso da página. Acabei inventando um livro ao revés... Mas para resolver um problema, não para inventar um livro original. Coloquei o nome desse livro "Livro-poema". Ele é um livro que é um poema, não é um poema dentro de um livro nem um livro de poemas. Não tem nem capa, é só um miolo. Como se fosse um objeto escultural no espaço. Feito isso, fui adiante: peguei uma placa branca, botei um cubo azul e embaixo a palavra "lembra". Quando se tira o cubo, lê-se "lembra"; quando se bota o cubo, a palavra "lembra" fica dentro do objeto, pulsando. Fiz vários poemas manuais com a participação do espectador manualmente no poema, ajudando-o a existir. Então falei: "Já fiz a mão entrar no poema, agora tenho de fazer com que o corpo entre". Bolei o "Poema Enterrado", porque aí não é mais só com a mão. Participa o cara inteiro. É o primeiro penetrável (que depois se passou a falar de penetrável nas artes plásticas), mas esse poema-enterrado é na verdade o primeiro poema-instalação. Essa experiência inspirou as experiências da Lygia Clark. Uma coisa está ligada à outra. O Hélio Oiticica, quando viu esse poema publicado no jornal, telefonou e disse que queria fazer o poema na casa que o pai dele estava construindo. Foi falar com o pai dele e o pai dele não queria, evidentemente, de jeito nenhum construir um poema, o lugar era uma caixa d'água. Mas ele insistiu tanto que acabou vencendo, e o poema acabou sendo construído lá.

Teatro e política do entretenimento
Somlivre.com - Quando o senhor falou de Hamlet, do poema ter um gesto, é uma coisa bem teatral, também. Ritualística. Fiquei pensando nas coisas que o senhor fez para teatro. O senhor não tem mais vontade de fazer nada para o teatro?
Ferreira Gullar - Veja bem, fazer teatro no Brasil é muito difícil. Eu tenho peças
escritas, mas montar... O Dias Gomes, que era um grande dramaturgo, com prestígio internacional, de uma popularidade enorme graças às novelas que fez para a TV, me disse uma vez: "Gullar, cada peça que vou montar é como se eu estivesse começando de novo. As mesmas dificuldades que tive aos 18 anos para montar minhas primeiras peças tenho agora, aos 70 anos de idade." O pessoal de teatro no Brasil são verdadeiros heróis, porque é uma dificuldade permanente. Quando o grupo toma a iniciativa de fazer é menos difícil, porque o grupo está empenhado, mas quando é um autor, ou um diretor que decide montar aquilo, é uma dificuldade. Eu estou fora. Nesse aspecto o governo de FHC é lamentável porque ele é um intelectual. Mas botou no Ministério da Cultura pessoas que só estão interessadas em financiar cinema. Que é bom, mas a cultura brasileira não é só cinema. E a poesia, por exemplo, tem menos público e dá menos voto.
Sl - É a política do entretenimento.
Gullar - Aquilo que eles acham que vai tornar o governo mais popular, eles patrocinam. O que é uma visão errada, porque quem faz opinião, os escritores, os críticos, o mundo intelectual, tem muita influência na opinião pública. Até nisso o oportunismo do governo deveria ver a importância de prestigiar a intelectualidade. Mas não, só querem chamar o Caetano Veloso e o Gilberto Gil. Mas não chamam porque o Caetano é um grande compositor, chamam porque são os mais populares, para tirar vantagem. Não chamam pelo valor.
Sl - Mas há uma confusão hoje entre valor e popularidade, o senhor não
acha?
Gullar - Um dos principais problemas da indústria cultural e da mídia é esse. Porque a mídia está pouco ligando para valor: ela pode até botar o que tem valor, mas não é pelo que tem valor. E aí, conseqüentemente, ela bota também quem não tem valor, mas tem popularidade. Criam-se muitos falsos valores: "O que não aparece na TV não é bom". Eu fiz uma palestra uma vez numa universidade e falei: "Eu queria dizer aos senhores que eu tenho um gato. Nunca apareceu na TV, mas existe, independente disso. Garanto a vocês que ele existe e que ele tem valor" (risos). “A maior parte da população não aparece na TV, mas existe, há seis milhões de pessoas aqui que nunca apareceram na TV, mas existem, acreditem em mim" (risos).

A norma e a liberdade
Somlivre.com - Falando na liberdade, nessa sua vontade de sempre querer
romper o que já existia, de querer ir além, de não aceitar normas que
metrifiquem a obra de arte, gostaria que comentasse a separação com os
concretistas...
Ferreira Gullar - Eles queriam uma coisa e eu queria outra.
Sl - O senhor é avesso à norma?
Gullar - Sou a favor da norma. Da norma social, acho que sem norma é o caos. Mas não se pode estabelecer normas gerais à poesia. Eu sou contra norma nesse caso porque isso é absolutamente inútil e inaplicável. Arte não se faz conforme normas. A última etapa da arte feita conforme normas deu na arte acadêmica do século 19, que chegou a não ser arte, porque era só a aplicação de normas e de regras. Deu uma arte fria, destituída de criatividade, e que evidentemente terminou sendo liquidada pelo próprio processo da história. "Plano piloto da poesia concreta"? Meu Deus, plano piloto é para cidade! Mas a poesia? Não tem cabimento. Sou uma pessoa rigorosa, exigente no meu trabalho, e sempre digo aos poetas jovens amigos meus que me procuram: "Fundamental é trabalhar, e sem rigor e sem exigência você não vai fazer poesia que preste". Claro que antes de mais nada tem que ser poeta, e antes do rigor está a capacidade criativa do artista, agora, uma vez deflagrado o processo criativo, você tem de agir com mão leve mas rigorosa.
Sl - Como assim?
Gullar - Porque você tem de ter a delicadeza de não abafar a criatividade, mas ao
mesmo tempo não pode deixar esparramar, não pode deixar que ela transborde. Não pode ser repetitivo, não pode ser excessivo, não pode ser retórico, não pode ser tudo aquilo que no fundo tire a força interior do poema. Porque a contenção, a intensidade e a riqueza do poema estão na razão direta da contenção que se tem. É como a água: se você deixá-la correr solta, ela não tem profundidade. Quando você põe limites, aí começa a encher. E ela ganha profundidade. Assim é a poesia. Você tem de deixar a água fluir, mas ao mesmo tempo deve criar os limites. E isso não é uma coisa pré-estabelecida, isso se aprende. Eu sempre disse para mim que o poeta tem de ser como um jogador de futebol. Ele não tem normas; ele está interiormente preparado. Se a bola vier por cima, ou pela esquerda, ele sabe como matar a bola na cabeça, no peito, no pé e fazer o gol! Não é uma coisa que esteja com normas escritas. Ele é o cara do futebol, como o poeta é o craque da linguagem. O poema vem, e a hora que vier, o poeta tem de estar preparado, para com rigor e a necessária leveza e criatividade fazer o poema. Agora, sem disciplina, sem exigência, você não faz a coisa de alta qualidade. Costumo dizer que a disciplina formal é imprescindível, mas não o suficiente.
Sl - O que seria liberdade então?
Gullar - Estar livre para fazer o que quiser não é liberdade. A liberdade é uma
relação dialética com a norma: quando não há norma, não há liberdade. Só posso
falar em liberdade se existe a contraposição da não-liberdade. Se tudo é liberdade
então não há liberdade – há o caos, a desordem.
Sl - Pode desenvolver isso melhor?
Gullar - O universo é infinito. Seria impossível viver no universo. O tempo é infinito - nós temos relógio para estabelecer as medidas de tempo! Nós criamos casa, os gabaritos, os tetos, para nos abrigar - para ter a referência! Um deserto infinito é uma coisa de angústia. O homem precisa de limites e referências. Diante do universo, diante de 20 bilhões de anos-luz, você não é coisíssima alguma! Eu pessoalmente, que vivo permanentemente a pensar no universo e a negar o universo, sou obrigado a dizer, "não tenho nada a ver com isso". Porque se eu ficar nisso, eu desapareço. Quando eu imagino que toda a matéria do sistema solar é 2% da matéria do Sol, que é uma estrela de quinta grandeza, que é um minúsculo ponto luminoso na Via-Láctea, onde há bilhões de sóis, que é uma dos bilhões de galáxias que existem no mundo... Então escrevi o poema e falei: "E onde fica o meu inaudível poema no meio disso?"
Sl - Se o senhor pensar assim, não vai escrever, não é?
Gullar - Resposta: Inaudível? Inaudível, se você estivesse na galáxia NG325, ou em Ganimedes! Mas você está aqui, Claudia Ahimsa, poeta e musa do planeta Terra. A Claudia é minha namorada, e é na verdade só o símbolo, é o meu igual, que está na esquina, que é o meu leitor. O meu poema é inaudível para quem está realmente em Ganimedes. Mas eu não escrevo para quem está em Ganimedes! Eu não escrevo para a galáxia que está a dois milhões de anos-luz. Para mim é como se ela não existisse. Eu escrevo para o cara da esquina, para o porteiro do meu prédio, para o amigo, para o garoto anônimo do Piauí que leu meu poema. É para esse que eu escrevo, que está ao meu alcance. O mundo é esse. O sentido que tem na vida é ter o outro cara que habita o mesmo planeta que eu. Não é esse gigantesco, maravilhoso, assustador universo. Porque eu continuo a me maravilhar e a me assustar com ele, mas é como se fosse realmente um festival tão extraordinário que excede minha capacidade de vivê-lo. Veja bem: por meio dos satélites e dos telescópios, vemos quasares que estão no limite do universo, a 20 bilhões de anos-luz... A luz desse quasar que vemos aqui cintilou há 20 bilhões de anos. E se o universo não existe mais? E se essa coisa que a gente vê já acabou? Eu não estou olhando o universo de hoje, mas o universo de 20 bilhões de anos. Pode ser que ele já tenha acabado, e a luz ainda não chegou aqui (risos). Mas também não faz diferença que ele exista ou não exista. Eu quero saber é da árvore que está aqui na minha janela, verde, bonita. A Terra foi feita para nós. Agora, imagine eu na Lua? Eu não quero viver na Lua...! Eu tenho horror, não quero saber de Marte, o homem vai viver em Marte? O diabo que vai, ainda bem que eu não existirei mais! Eu não quero; quero viver aqui em Ipanema, ou numa praia – da Itália, do Chile, onde for –, quero estar no planeta azul, que é o nosso lar. Prazeroso, bonito – para nós, relativamente bonito para nós. Mas não sou ET, então gosto de viver aqui.

Dom, linguagem e influência
Somlivre.com - E essa formalidade seria o quê? Ler os poetas, aprender
gramática?
Ferreira Gullar- Você só aprende a fazer poesia lendo os poetas. Você só aprende a fazer arte vendo arte, e no começo até imitando. O Malraux diz: a arte começa pela imitação. Todo pintor começou imitando alguém, que o tocou, o fecundou. Até que aquele vire você. O Herbert Reed, que era poeta também e um grande crítico, diz que a influência é como transfusão de sangue. O sangue tem de ser do mesmo tipo, senão mata o paciente. Se você se deixar influenciar errado, você está lascado (risos)!
Sl - O senhor acredita em dom?
Gullar - Acredito que você nasce poeta, nasce pintor. Isso, é claro, metaforicamente falando. Você nasce com as qualidades que possibilitam que você
seja poeta. Não basta aprender. Um cara como o Oscar (Niemeyer) nasceu arquiteto! Sem dúvida! Quando ele concebe o prédio, a casa, antevê o espaço como se estivesse dentro. Ele cria o espaço e o modifica em função de uma visão. Ninguém aprende isso. Agora, ele teve de aprender a desenhar, se influenciou pelo Le Corbusier. Que depois ele abandonou e violentou a forma herdada, que era toda ortogonal, feita em linhas e ângulos retos. Transformou na arquitetura lírica e inventiva das formas redondas e sinuosas, que mudou a linguagem da arquitetura contemporânea. Mas não basta o dom, é preciso trabalho, conhecimento, ir fundo nas coisas. Eu pinto, desenho. Mas eu sei que não sou pintor. Porque eu não jogo a minha vida naquilo, como nos meus poemas.
Sl - Como o senhor sabe disso?
Gullar - Um poema é uma experiência de tal densidade, intensidade, que não tenho quando estou pintando. Mas eu sei que o Antonio Henrique Amaral tem, os pintores têm. O que muda é o que você joga de existência pessoal nas coisas. Aquilo ali é vida ou morte para você. Além do talento, tem de ter a entrega. É necessidade mesmo. Todo poeta tem isso. Para ele, a poesia é a vida dele. O cara pode ser poeta, gostar de tocar violão e tocar bem; mas ele não é o Baden Powell! Tem que ter talento, mas, além disso, ter a paixão para se entregar naquele nível.
Sl - E também a paciência...
Gullar - Sim, porque arte é isso. Por isso eu digo que esse negócio de arte
conceitual não é arte. É expressão. Não elabora, porque não tem linguagem. Hoje ele faz terra dentro de garrafas, amanhã cordas dependuradas no teto... Cada hora é uma coisa, uma matéria, uma linguagem. Não há controle, não há disciplina, não há aprofundamento. Não pode haver! Só pode ter se limitar o campo de atuação. Quando tudo está à sua disposição, é como se nada estivesse. Para um poeta também, todos os assuntos estão aí. Todas as palavras estão aí! Só que não estão. Se estivesse nessa situação, jamais escreveria um poema. A própria disciplina, a própria experiência de vida e a própria técnica que desenvolve na poesia selecionam e restringem o mundo sobre o qual o poeta vai falar. Através de uma única coisa eu posso dizer o mundo todo. É uma besteira pensar que para criar uma obra de arte rica tenho de usar todos os materiais do mundo. Eu posso usar um único. Tem artista que usa, magistralmente, dezenas de materiais. É uma personalidade específica. Mas não é necessário.

Movimento neoconcreto
Somlivre.com - Como foi fazer poesia concreta na Internet?
Ferreira Gullar - Ah, foi divertido, porque como os poemas já estão escritos, então resolvi usar os recursos que a Internet possibilita para dar uma forma nova para o poema, para enriquecer os poemas. Com movimento, com cor, com coisas que eles já tinham potencialmente. Muitos de meus poemas, como o “Formigueiro”, que era um livro que ia passando, e as letras estavam nos mesmos lugares, só que diferentes... Agora, não consegui fazer nenhum poema novo para colocar no site. Mas explorei muito dos poemas. Por exemplo, um dos poemas que eu gosto muito é “Girassol”. Fico brincando, me divertindo.
Sl - O senhor tem vontade de colocar mais poemas daquela época no site?
Gullar - Tem outros que eu poderia talvez botar, vou ver, por exemplo, o “Verde” - esse é um poema germinal, porque ele deflagrou tudo. Por fracassar, ele precipitou todo esse processo. A principal característica do movimento neoconcreto é a participação do espectador na obra. Isso nasceu do fracasso desse poema e da minha tentativa de resolver esse fracasso. Quando eu terminei com minha fase de vanguarda eu virei um maldito, hoje a Lygia é um nome mundial. Não por vaidade, mas por verdade histórica eu digo isso. É só o cara parar para pensar: nada nasce de nada, as coisas têm causa. Nasceu do "Livro-poema" o manuseio da obra da Lygia, do Hélio Oiticica... Nasceu do livro; por acaso fui eu que fiz, podia ter sido outro. Foi a poesia que gerou a revolução nas artes plásticas do movimento neoconcreto. Isso ninguém sabe. Sabe, mas não se diz. Eu era também o teórico do movimento, não é por acaso que isso aconteceu. E o movimento era muito interativo, todos nós nos influenciamos uns aos outros. Era um grupo mesmo, amigos. A gente discutia e ia um influenciando o outro. Eu tinha esse papel mais deflagrador desse processo porque eu era mais consciente dos problemas das artes plásticas e do movimento concreto.
Sl - Por quê?
Gullar - O Mário Pedrosa, que foi quem na verdade me iniciou nesse movimento, foi meu mestre. Cheguei aqui jovem e ele era o grande crítico. Ele me ensinou e abriu minha perspectiva para um monte de coisas que eu desconhecia, era um provinciano. E o Mário, além do grande crítico que era, era um poeta! Era uma pessoa criativa e generosa. Todo esse grupo foi muito influenciado por ele, Lygia Clark, Lygia Pape... Pelas idéias e pelo grande estímulo que ele dava para a inventividade e criatividade das pessoas. E era ao mesmo tempo sem sectarismo, porque ele defendia a arte concreta, mas também a arte dos loucos, do Museu da Imagem do Inconsciente. Foi o cara que mais escreveu sobre isso; defendia a arte das crianças, a revelação, a descoberta do talento, da criatividade. Ele é uma figura central desse período.

Poesia concreta hoje
Somlivre.com - O que o senhor pensa hoje da poesia concreta?
Ferreira Gullar - As contribuições do Haroldo, do Augusto, do Décio foram muito importantes como elemento de ruptura de uma poesia que estava se academizando. A geração de 1945 recuperou as formas clássicas - o soneto, a redondilha, o poema rimado, metrificado-, o que tinha sido liquidado pelo modernismo de 22. E o Drummond, Murilo, Vinicius, Jorge de Lima voltaram ao soneto. Eu, que era de São Luiz, que tinha começado fazendo poema metrificado e rimado, rompi radicalmente depois do meu primeiro livro, exatamente num momento em que a poesia brasileira estava recuperando essas formas. Quando A Luta Corporal saiu, era um corpo estranho. Até um crítico falou: "O que esse cara está pensando, que nós voltamos para 22?".
Sl - E como o senhor se sentia com isso?
Gullar - A minha geração, a do Haroldo, do Augusto, do Décio, queria romper! E eles operaram essa ruptura. Isso nós temos de reconhecer. Eu discordo é do procedimento de criar normas. Mas nunca neguei a importância deles na deflagração do movimento e na busca de um caminho novo. Acho que fazer uma poesia sem discurso tem vida curta. Por isso terminei indo para a arquitetura, para as formas espaciais. E eles também criaram outras experiências com livros, com objetos, porque não dá para ficar fazendo aquele tipo de poema geométrico, sem discurso, que é a repetição de palavra. É muito pobre. O Drummond diz mais ou menos assim: o poema em estado de dicionário. Mas a palavra do dicionário não é a palavra poética. É a palavra abstrata. E a palavra da poesia concreta é abstrata. Por isso eu brinco dizendo que ela devia ser chamada de poesia abstrata, não poesia concreta.
Sl - Por quê?
Gullar - Porque a palavra fora do discurso é abstrata. A palavra só é concreta quando eu digo: "O gato que está deitado ali na poltrona". Como dizia Hegel, o concreto é a soma de todas as determinações. Pêra é abstrato – o que é concreto é definir e situar a pêra: "A pêra que eu comprei ontem na feira e que está agora na minha geladeira custou muito". O que dá concretude à poesia é o discurso. Contraditoriamente, como busca uma concretude maior que a do discurso – porque o discurso também é abstrato –, a poesia é um discurso contra o discurso. Ela tem de se valer do discurso porque sem ele não existe. Não posso falar sem ser: sujeito-verbo-objeto. A palavra só caminha no discurso. Quando se tira o discurso, ela congela. Mas o discurso tende a abstratizar! Então o poeta usa o discurso, porque essa é a condição real da linguagem. Mas ele usa contrariando o discurso, para dar mais concretude à poesia. É uma dialética do discurso. Sem discurso, não há concretude. Tem todo um mundo de densidade e riqueza da expressão poética que vem desse tornar concreto o discurso que a poesia concreta não pode ter, pela própria opção que ela fez.

Vanguarda e rebeldia domesticada
Somlivre.com - Se a poesia concreta não é o discurso em si, ela serviria então apenas para aguçar os sentidos?
Ferreira Gullar - Ela foi uma tentativa de chamar a atenção para as qualidades visuais do poema, sensoriais e perceptivas do poema. Nisso ela enriqueceu o fazer poético. Só que isso tem vôo curto, como toda vanguarda. Todos os movimentos de vanguarda duraram dois anos, três anos. O próprio cubismo, que é o primeiro e o mais revolucionário de todos, na verdade durou quando começou a guerra, mas antes disso suas experiências já estavam esgotadas. Alguns conseguem fecundar outros movimentos, mas eles são radicais e pelo seu radicalismo são limitados. Às vezes aprofundam uma experiência, mas não vão adiante, pela natureza radical deles. Pelo seu tipo de exigência. E desses, o mais radical de todos, no sentido desse esgotamento, é o dadaísmo.
Sl -Por quê?
Gullar - É o movimento que veio para negar a arte, ele não tinha mais alternativa, e o Duchamp é a expressão disso, do movimento que não tem saída. É a juventude que se defronta com a guerra de 1914 pela frente e com os movimentos radicais anteriores que praticamente negaram a arte: já tinham destruído tudo, ela não tinha o que destruir mais. Tanto que em Duchamp existe estranhamente um retorno à tradição quando ele diz: "Sou contra a arte retiniana porque ela não usa a imaginação". Ele chama retiniano o cubismo, o futurismo, que são artes sem tema. Não têm assunto. É só a percepção instantânea, não têm enredo. Duchamp estava num impasse. Tenta fazer um tipo de arte que teria um assunto, só que é uma coisa tão cerebral, como é O Grande Vidro, que é uma coisa incompreensível. Existe lá uma história, mas é intraduzível, imperceptível, só existe na cabeça dele. Mas é um radicalismo drástico que acabou com a arte, para quem seguiu com a tradição duchampiana. É a não-arte: hoje em dia, fizeram da não-arte a arte.

O próprio Duchamp na verdade fez duas obras, O Grande Vidro, que ele não terminou, e o Etant Donnés, que ele morre sem terminar também. Isso ele próprio diz, não sou eu. Quando perguntaram para ele: "Em 1920, o que você fazia, alguma coisa que tinha importância?", "Não, nada tinha importãncia. Não, uma coisa: O Grande Vidro". Ele, que era blasé, para quem nada tinha importância - mas ele reconhece a importância de O Grande Vidro e de Etant Donnés, que é provavelmente sua obra mais significativa. Mas é também algo mais surrealista, que não tem muito do dadaísmo inicial dele, e uma obra que valoriza a imaginação, na qual ele consegue não ser retiniano - tem um clima onírico fascinante. Mas é uma coisa de um homem que passou a vida inteira para fazer de fato duas obras, e as outras coisas são meio uma brincadeira, meio um experimentalismo que não vai adiante.

O Duchamp antes de qualquer coisa era um chargista de jornal, ele era um gozador, e sempre foi a vida inteira. Não é à toa que os jogos de palavras são muito humoristas, e ele tinha um senso de humor muito grande que influenciou inclusive os surrealistas. O Duchamp é uma pessoa muito contraditória, mas é uma personalidade muito especial. Não pode copiar o Duchamp, não vai adiante! Porque ele era uma personalidade especial, uma pessoa que, depois que faz O Grande Vidro, passa 20 anos jogando xadrez?! Ele é isto, ele não posava, ele era assim, com um certo niilismo, ele era muito inteligente, muito lúcido, então ele tinha uma visão crítica da arte que é dada do movimento, da época que ele nasceu e do dadaísmo, que é uma anti-arte. Essa visão niilista o atrapalha, mas é uma coisa da personalidade dele também! Atrapalha porque ele não tem a paixão de um Picasso, de um Braque. É a anti-arte.

É claro que no meio tem um Kurt Schwitters, que era um cara extremamente talentoso, tomou um caminho próprio a partir das colagens cubistas e depois inventa uma coisa extraordinária que são os Merzbau. É um dos poucos dadaístas realmente criativos, o outro é Jean Arp. Mas o movimento era essencialmente niilista, anti-arte, e chegou no limite. Tudo que se faz hoje eles já fizeram lá em 1920. Expor maleta, roupa, guarda-chuva, contando sua narrativa na vida. Porque quando você rompe com a arte, você fica no mundo. Se eu disser que é arte o que eles dizem que é arte, então esse caderno é arte, essa caneta... Aquela liberdade que eu digo sem limites, que eu posso botar o que eu quiser. Isso no fundo é uma grande frustração para o próprio artista, porque o que vai sobrar de um artista que fez instalação a vida toda? As fotos das instalações? Do ponto de vista artístico, não vai sobrar nada. Porque se alguém for se interessar por essa experiência, vai se interessar pelos primeiros, Duchamp, Arp. Não vai se interessar pelos derivados, influenciados.

Nunca ninguém na história da arte se interessou pelos filhotes dos criadores. Quantos Picassinhos surgiram depois de Picasso? Alguém está ligando para eles? Isso é que é o problema. Então o cara que fica imitando o Duchamp, fazendo exposição de urinol em 2001, quando Duchamp fez isso em 1917, está na perda de tempo. É coisa de subdesenvolvido fazer isso. E se deixar levar por uma coisa niilista, que é uma coisa destrutiva... porque o dadaísmo é niilista. Vamos nos fixar nessa coisa do urinol só pelo que significa simbolicamente; porque ele é uma repetição, ele não tem nenhuma importância, não choca ninguém mais, porque a essa altura nada choca mais ninguém.

A definição da grande obra de arte, seja no romance, na música, no teatro, na poesia, é uma obra com sentido, que vai fundo nas questões da existência. Não é a piada; a grande obra poética não são os poemas humorísticos que se fizeram ao longo da história, não são as piadinhas que até alguns bons poetas fizeram de brincadeira. É a Divina Comédia, é Terra Devastada, são Os Quatro Quartetos, do Elliot, é o Sentimento do Mundo, do Drummond. A menos que queiram mudar, dizer que isso não é mais nada. Bom, mas urinol, cocô? Teria que ser uma coisa diabólica; teria que ser como é em Jean Genet. Se você quer ser maldito, você tem que ser Jean Genet, tem que ir para a cadeia, tem que ser o cara que muda o mundo, disposto a rachar com tudo. Mas expor no Museu de Arte Moderna, com dinheiro, com beneplácito do governo, cocô?? É uma bobagem, porque não é rebelde!

Se eu aceito o louco rebelde, eu estou com ele! Se aparecer um piradão aí, botando pra foder, com uma criatividade extraordinária... Eu estou com a criatividade, fora de todas as normas. Agora, brincar de rebelde, com tudo pago?? E tudo aceito, e com a crítica toda louvando as bobagens que o cara faz??? Não dá. O cara ficar em casa bolando isso, a sério: "vou expor cocô no museu"? É ridículo; o cara não se dá conta da bobagem. Existe uma academia da vanguarda; consagrada, em todos os salões, em todas as universidades, bienais do mundo. É uma coisa tão louca, uma academia da rebeldia. Da suposta rebeldia; da rebeldia mansa, parece aquela coisa do corno manso. A rebeldia domesticada.

O cheiro da tangerina
Somlivre.com - O senhor disse que seu poema nasce do espanto, em uma entrevista. Que coisas o espantam?
Ferreira Gullar - Eu não sei o que me espanta, qualquer coisa pode me espantar. O que eu chamo de espanto é uma revelação. Como o cheiro de uma tangerina. Desde menino, como tangerina e sinto cheiro de tangerina. Mas um dia o meu filho estava descascando uma tangerina aqui nessa sala, eu sentado aqui lendo jornal, e o cheiro da tangerina me tocou como uma coisa reveladora, como se eu nunca tivesse sentido aquele cheiro. Era um cheiro tão jovem, tão revelador. Fiquei naquele estado, tinha que escrever. Mas eu não tinha nada para escrever, só tinha um cheiro. Escrever o quê? "Que cheiro bom"? Dentro de mim eu fico fecundado, mas não tenho como fazer, e não sei o que fazer, mas está dentro, tem que sair!

Levou meses. Comecei a ler sobre tangerina, fui para uma enciclopédia. Só para estar dentro do problema, do assunto. Aí um dia estava no jornal onde trabalhava e de repente me deu uma loucura e comecei a escrever disparatadamente tudo que me viesse à cabeça, relacionado com tangerina ou não-tangerina, um monte de páginas. Depois meti tudo no bolso, saí do jornal e vim para casa. Comecei a ler e começaram a surgir outras idéias misturadas - foi uma loucura a maneira como foi feito. Mas ainda não tinha nascido.

Aí um dia eu pego o carro pra ir à praia, e quando chego no meio do caminho vem uma frase: "Com raras exceções, os minerais não têm cheiro". Começou o poema assim, “O Cheiro da Tangerina”. Depois caí em mim que os minerais não cheiram. Disse: "Pô, mas tem um com cheiro, o enxofre". Fui pesquisar se o enxofre era mineral; era. Como é que eu vou saber como é que o poema vai se desenrolar? Se começa de uma maneira inteiramente inesperada, fora de propósito? O espanto é isso, algo que irrompe o tecido conceitual do mundo. Porque nós vivemos onde está tudo explicado. Aparentemente. Mas de repente, como não está explicado, o mundo mete o cotovelo, rompe o tecido e lhe mostra o cotovelo dele, o cotovelo assombroso dele. O real mostra o seu cotovelo inexplicável. E aí você entra nesse estado do inexplicável, do mistério do mundo, da riqueza da vida. Aí qualquer coisa acontece.
Sl - Há vários poemas seus que falam do Rio, direta ou indiretamente. Qual sua relação com o Rio?
Gullar - Vim para cá com 21 anos, e só voltei a São Luís para passear. Nem penso em morar lá novamente. São Luís é minha paixão doentia. Aquela paixão não-resolvida. É o berço de tudo que sou, e por isso mesmo não dá para viver lá. É muito emocionante, é muito doído, é muito sofrido, é como viver em estado de paixão e delírio. Não pode viver assim, tem que viver no mundo. Isso tudo porque, quando vim embora, rompi com a raiz, ficou lá. É saudável ficar na cidade, sair da cidade é problemático. Ficar na cidade onde nasceu e morrer lá é normal e é saudável. Mas há pessoas que não agüentam e vão embora. Quando vão embora, estabelecem uma ruptura em suas vidas: fica uma vida de lá e outra de cá. A ruptura é geradora de uma porção de coisas, mas também de problemas, de sentimentos, de angústias, frustrações. Então é uma coisa problemática.

Adoro o Rio, é minha cidade, que eu escolhi, é linda, minha paixão de viver. A cidade que me salvou, que me deu alegria de todas as perspectivas - pessoais, culturais. No exílio eu sofria muito porque não consigo viver fora do Rio, para mim é inconcebível. Não posso ficar muito tempo fora daqui, não há hipótese. Quando eu vim para cá, foi muito sofrido no começo, eu não tinha dinheiro, morava em vagas, quartos sórdidos, não tinha dinheiro para comer. Mas de tudo isso eu me lembro com muita paixão, mas eu era um poeta maldito, jovem, alucinado, apaixonado pela poesia. Eu estava pouco ligando se não tinha o que comer direito, se não tinha casa. Eu só me perturbava de morar no quarto porque os caras ficavam conversando, eu não tinha privacidade, queria ler e não conseguia, às vezes saía para a rua e ia a uma praça e ficava lendo debaixo de um poste. Quando eles iam embora, eu ficava lendo, de manhã cedo. Eu só tinha uma roupa, que já estava puída. Eu dizia que meu paletó estava impregnado de sol e de noite, ele já era uma couraça. Aquele paletó marrom que eu mandei fazer lá na Lapa, num alfaiate de terceira categoria. Aí conheci Lúcio Cardoso, Oliveira Bastos, a gente vivia vagabundeando pela rua, à toa, rodando pela cidade, pela Lapa, bebendo cerveja, comendo siri, sardinha frita. Vivia na maior malandragem, não tinha compromisso, não tinha nada, não tinha filho, nem mulher, nem parente. Até que conheci Thereza, e nos casamos.

A história de um gato chamado Gatinho
Somlivre.com - Gostaria que você falasse um pouco do livro infantil que você fez, Um Gato Chamado Gatinho.
Ferreira Gullar - Eu nunca tive intenção de fazer livro infantil. Eu fiz um poema para o Gatinho, pela graça dele, pensando em depois mostrar para as minhas netas. Mostrei para a Claudia, minha mulher, que riu e sugeriu: "Essas graças que você me conta do Gatinho, por que você não usa para fazer uma série de poemas sobre ele?" Eu achei uma boa idéia e resolvi tentar. Fui fazendo. Quando eu já tinha feito uns dez, meu neto veio aqui, o Estêvão, e começou a desenhar uns bichos impressionantes! Rinoceronte, hipopótamo, e tudo começando pelo pé! Então eu disse: "Você não quer ilustrar o meu livro do Gatinho, não? Vamos fazer um livro em parceria, o vovô e o netinho". Ele disse: "Tá, vou ver". Chamei a mãe dele, Luciana, minha filha, e entreguei os poemas. Um ano depois, ele não tinha feito nada. Perguntei a Luciana o que tinha acontecido. Ela disse: "Ah, ele falou que só desenha bicho selvagem. Ele é ecológico, só quer desenhar bicho em extinção, falou que gato não precisa". Gato não interessa a ele, ele é um militante, pintor engajado (risos). Bom, aí deixei o livro para lá. Foi quando me telefonaram da Salamandra e me pediram um livro para crianças. Eu disse que não escrevia para crianças, mas que tinha uma série de poemas para o meu gato, e eles pediram para ver. E se entusiasmaram pelo livro do Gatinho! E foi assim que o livro saiu. É um livro vivido, é o meu gato, que existe, com as gracinhas e as coisas que ele faz e o que eu penso dele. Não é um livro como nego faz, "vou fazer um livro sobre gatos para crianças". Eu não sei escrever para criança; eu escrevi isso.
Sl - Como ganhou o Gatinho?
Gullar - Meu filho Paulo pediu para a mãe dele um gato, isso há 12 anos. Nós sempre tivemos gato, eu sempre gostei de gato, minha mulher Thereza e as crianças também. O último tinha sumido. Hoje ele é o meu companheiro, me acorda, está cada vez mais exigente, agora deu para dar berros. Ele vai vivendo e vai entendendo as coisas, e agora quer impor a banca dele. Se estou lendo demais, ele chega na porta do quarto e MIAAAAAUUUU! Dá um berro que eu levo um susto! E ele faz de propósito, não é um miado normal. É um miado como quem diz: "Pô, que é que há, cara? Vai ficar aí lendo?" Eu fico no telefone conversando com a Claudia, às vezes demora demais e ele está aqui na sala, ele me procura, vê que estou ao telefone, chega bem perto e dá outro miado escandaloso desses. Já dei umas broncas nele aí. Gato é um bicho danado, porque ele entende das coisas e quer impor a vontade dele. E esse então, que é um dos gatos mais inteligentes que tem... Ele sabe como é que ele mia, o que é que ele quer dizer... É uma figura.
Sl - O senhor pensa em escrever outro livro para ele, ou outro livro para crianças?
Gullar - Não, eu escrevi mais três poemas para ele porque a Adriana Calcanhotto leu o livro e se apaixonou. E agora está botando música nele. As três músicas que ela já fez, que eu já ouvi, são lindas! Ela é muito talentosa! Eu prometi a ela fazer mais um poema ou dois, para não ficar só os poemas do livro, para o disco ter também uns poemas inéditos. Terminei fazendo três. Vai sair uma nova edição do livro com o CD.

Leituras e cotidiano
Somlivre.com - O senhor se lê?
Ferreira Gullar – Às vezes eu me leio por razões práticas, ou a necessidade de rever coisas que vão ser reeditadas, mas raramente eu me leio. Antigamente até me lia, mas hoje, muito pouco. Às vezes quando uma pessoa escreve e ressalta que leu determinado poema, e que gostou muito, se é uma coisa mais antiga, ou uma coisa que eu não releio há muito tempo, aí vou dar uma olhada para ver porque o cara gostou. Não é um hábito.
Sl - O que o senhor lê?
Gullar - Hoje eu releio mais do que leio, leio algumas coisas sobre cosmogonia. Livros sobre o cosmos, sobre buraco negro... E livros sobre história. E releio filosofia, e eventualmente alguns de literatura. Outro dia estava relendo contos russos que eu tinha lido há 40 anos. Reli Dostoiévski, Turguêniev, Gógol. Reli Kafka, também. Uma ou outra coisa de hoje, eu leio, mas...
Sl - O que gosta de ler de literatura contemporânea?
Gullar - Às vezes livros sobre política, sobre Brasil, eventualmente até livros de outra natureza. Recentemente li um livro do Juan Arias que me chamou a atenção, Cristo, Esse Desconhecido, que é um livro muito interessante. Ele conta a história do Cristo e todas as versões possíveis e existentes, e mostra documentos, falsos e verdadeiros, examinando toda a lenda que há em torno da figura do Cristo, se existiu, se não existiu.
Sl - Como é seu cotidiano?
Gullar - É acordar, ir comprar pão e leite. Às vezes vou apanhar capim pro Gatinho, e voltar para casa. E ler jornal; a primeira coisa que eu faço é acordar, apanhar os dois jornais que assino e ler. Fico uma hora, uma hora e meia lendo jornal. Depois eu saio para comprar as coisas. Aí ligo o computador e começo a trabalhar, conforme o dia, conforme o que eu tenho de fazer, os compromissos.
Sl - O senhor está escrevendo atualmente, poemas?
Gullar - Poema é uma coisa que eu não posso escrever todo dia, nem toda hora, eu passo anos sem escrever. Depois do livro Muitas Vozes eu passei dois anos e pouco sem escrever um verso, uma linha. Aí escrevi um poema e depois outro. Um saiu até no Mais!, na edição comemorativa da 500a edição: "Rainer Maria Rilke, a Morte". Foi o segundo poema que escrevi depois de dois anos sem escrever nada. E também depois dele não escrevi mais coisíssima alguma. Escrevo pouco. Só quando sou movido por alguma coisa. Poesia não tem sentido ficar fabricando. Poesia tem de ser de uma descoberta, como foi esse poema do Rilke, inesperado. E eu tenho tentado escrever um poema sobre o cosmos, por causa da minha obsessão alucinada com esse tema. Eu fico tentando, já tentei várias vezes, já fiz anotações de páginas e páginas e páginas e o poema não nasce; tento, mas sai uma besteirada. Não consigo escrever, só sai banalidade. Eu não encontrei o umbigo do poema. O poema nasce por um umbigo, que nem a gente. É uma série de fatores, estado de espírito, tem que ter esse clima, essa coisa reveladora, senão não dá. Ficar frio, tentando fazer de propósito, não dá. Tem que chegar um momento em que (estala os dedos) dispara um negócio, você entra num estado e deflagra. Não quer dizer que vai sair de uma vez ou vai sair pronto, mas deflagrou, encontrou o umbigo; aí vai. Mesmo que dure meses. Esse poema do Rilke eu escrevi 15 vezes. E ele saiu quase totalmente diferente do que começou. Mas, quando começou, eu senti que tinha começado.